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novembro 18, 2013

Sobre o Desamparo, a Exigência às Instituições e a Constituição do Sujeito

       Antes de falar sobre o tema, quero marcar algumas linhas com o contexto que antecede este escrito, o atravessa e o implica. Ele surge de uma provocação para estruturar uma reflexão ao II Encontro de Práticas Profissionais do Curso de Psicologia da URI-Campus Erechim, a fim de problematizar um fenômeno social, característico da história recente e apelidada de pós-moderna, que se refere ao desamparo do sujeito e sua implicação na constituição do sujeito e consequentemente - por assumir uma compreensão sócio-histórica - da própria sociedade, numa relação de retroalimentação. Este fenômeno está presente nos diferentes espaços sociais e inquieta as diferentes instituições, seja a família, a escola, as organizações de trabalho, os estabelecimentos de saúde. Mais do que isso, tem exigido respostas e ações que, apesar de prementes, não sabemos desempenhar e se não isso, nos furtamos de tal ação.

    Feita demarcação contextual, passemos a pensar o que se entende por desamparo. Recorrendo a definição dicionarizada temos, para este vocábulo a definição de abandono, de falta de meios, auxílio ou proteção. Destarte, assumimos tal definição para que possamos pensar a constituição do sujeito, afinal este é o fenômeno que refiro. Permitam-me ainda acrescentar, a 'bel prazer' a ideia de vazio existencial como desdobramento da experiência de desamparo.

    Demarcado o contexto de surgimento deste ensaio e o significado que o desamparo assume neste, é possível traçar um primeiro fator para pensar o sujeito que tem se constituído atualmente e as exigências que emergem nos diferentes espaços sociais. Por assumir uma perspectiva sócio-histórica de constituição do sujeito, é mister traçar algumas características do período que vivemos. Se anteriormente - referindo-se a história - falávamos de certezas, verdades, de um universo estável e harmônico, com regras claras, distintas e tanto a sociedade como os fenômenos que nela apareciam apresentavam regularidade, momento este denominado de modernidade, o que experimentamos hoje é no mínimo um estado líquido de tais características.
   Se concordarmos com a ideia de que experimentamos o que Bauman (2001) chama de modernidade líquida e Rossato (2012) de pós-modernidade, ou seja, um período caracterizado pela constante renovação ou criação de produtos de consumo, universalização de mercados, intensificação de inovações e um ritmo acelerado - e por que não dizer alucinado - de mudanças em todos os setores, podemos assumir também como padrão deste momento uma profunda sensação de insegurança e instabilidade. De um mundo monárquico, marcado pela continuidade e permanência, caracteristicamente sólida, passamos a um mundo liberal com uma nova ética. Ao assumirmos a liberdade a sensação de segurança é tolhida. Nessa gangorra o equilíbrio entre estes dois extremos é impossível, sempre haverá mais de um e menos de outro. E qual a influência disso na constituição do sujeito, na constituição, desenvolvimento e existência das instituições?
   Parece prudente pensar que o sujeito é marcado pelo tempo que vive e se o tempo que vivemos é este que, incipidamente descrevi, eis que o sujeito, pode apresentar as mesma características do seu tempo - ou no mínimo características próximas. Se temos uma estrutura difusa, mutável, irregular, os laços sociais e humanos apresentarão características parecidas, as identidades mais e mais fragmentárias, marcadas por experiências que mais parecem ensaios descartáveis.
   Vejamos: se a fragmentação e o descarte são tônicas do momento, a existência que se funda neste 'meio de cultura' apresenta-se numa configuração faltante. Contudo o interessante desta era é que o conjunto ideológico impetrado denota a noção de pujança, força, realização, gozo do sujeito. Qualquer experiência diferente dessa parece - e muitas vezes é - algo totalmente esfacelador ao/do sujeito. Nesta experiência líquida tem-se a ideia de que a única verdade é a satisfação e que o meio oferece tudo que o sujeito necessita para realizar-se. Neste mundo marcado pelo ideal, eis que pensar na falta, no limite, no negativo parece ser simplesmente impossível e impensável. Qualquer coisa diferente do idealizado, imaginado, fantasiado, joga o sujeito ao desamparo.
   O ser jogado neste não-lugar - termo utilizado neste ensaio para gravar alegoricamente que a experiência diferente do hedonismo não tem espaço nesta era, portanto não pode o sujeito experimentar tal situação e a qualquer sinal de aparição deste não-lugar haverá uma retaliAÇÃO pelo sujeito jogado - parece viver a amargura, a impossibilidade, o sofrimento.
   Afinal, qual relação possível entre o desamparo e tais características? Ao entender o desamparo como falta de meios, de proteção, abandono, que desdobra-se no vazio, percebemos que o sujeito tem produzido sua subjetividade em espaços sociais fragmentados. Não raro - a ponto de nem nos surpreendermos mais - tomamos conhecimento de que uma criança, adolescente ou adulto está vivendo relações humanas tão frias que sequer podem ser classificadas de humanas. As 'faltas' são tão presentes que esvaziam qualquer possibilidade de significação. Associado a velocidade, frivolidade e liberdade que sujeitos se encontram, é difícil, quiçá impossível produzir outra coisa, senão um sujeito do desamparo.
   Temos então o sujeito do desamparo. Como podemos descrever este sujeito? Sua construção se dá de fora para dentro. Imagine uma casa que é construída iniciando-se pela pintura e embelezamento do que não existe, para chegar às vigas fundantes da habitação. Este exemplo chega ser impossível de imaginar, entretanto no processo de subjetivação do sujeito desamparado, uma das possibilidades que se apresenta é esta, pois o que o estrutura é o vazio de sua existência. Em tempos líquidos é a imagem o que tem interessado, destarte pouco importa o que sente o ser humano que está numa festa, importante é o que ele vai aparentar na foto que será postada nas redes sociais virtuais!
   Este é o sujeito que chega hoje nos diferentes espaços de atuação, sejam instituições escolares, de trabalho, de atenção psicológica e social. O sujeito estruturado no vazio e que demanda dos serviços - mais precisamente daqueles que dão vida aos serviços - algo que por constituição desconhecem, e mesmo desconhecendo, exigem algo. O fazem porque o vazio é insuportável e qualquer coisa que possa preencher, desde que não implique a perda da liberdade, será 'bem vindo'.
   E nós - aqueles que dão vida às instituições - o que podemos fazer? Somos sapientes a ponto de poder auxiliar estes sujeitos? Que responsabilidade temos para que, resignados, tenhamos que fazer algo? Se dizem que tal produção é marcada, atravessada pelas características sócio-históricas, como ou por quê deveríamos fazer alguma coisa? E as famílias o que vão fazer, afinal não é este o nascedouro dos sujeitos?!
   Estas podem ser algumas de nossas perguntas, entre tantas outras, afinal também somos sujeitos deste tempo. Tendo a pensar que, embora não saibamos muito bem como lidar com o que tem chegado às instituições estas tem sim um papel importante a desempenhar. Parece importante pensarmos e problematizarmos as 'verdades' de nosso tempo. A ética e a lógica que temos vivido, e por vezes comprado como verdade, marcada pelo consumo e descartabilidade necessita de uma interdição. Interdição esta que também serve ao sujeito, para que o possa elaborar e reelaborar a falta; que possibilite ao sujeito a (r)estabelecer a capacidade de significação, simbolização oriunda da linguagem interna.
   Sim, temos um papel fundante me parece. Precisamos amparar o sujeito, emprestando-lhes capacidades egóicas que permitam romper a idealização e hedonismo, experimentar a frustração sem que isso seja totalmente mortífero para sua existência. Refiro-me a capacidades egóicas pensando naqueles que fazem viver as instituições, e não que estas possuam em sua maquinaria alguma função do EU. Neste sentido é possibilitado o processo de significação, ou como disse anteriormente processos de subjetivação. O sujeito precisa dar sustentação a imagem, afinal a pintura da casa só pode aparecer se uma estrutura a estiver sustentando.
    Parece-me pouco produtivo promover uma investigação numa espécie de caçada aos 'culpados'. Penso que problematizar o fenômeno demarcado neste ensaio, o que implica uma reflexão sobre o assunto pode ser mais produtivo. Frear o sujeito, os nichos sociais e facilitar o pensar parece uma ação fundante e fundamental. E se o sujeito do desamparo está chegando até nossos espaços, parece-me possível esta ação. Não entendo com isso que a exigência é só destas instituições, mas alguém precisa iniciar o amparo.
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Referências Bibliográficas
ROSSATO, RICARDO. Pós-modernidade: angústias e esperanças. Santa Maria: Biblos, 2012.
BAUMAN, ZIGMUNT. Modernidade líquida.(Tradução, Plínio Dentzen.) Rio de Janeiro: Zahar, 2001.